O início

Era o meu presente de aniversário. Papai chegou com a proposta um mês antes, dizendo que tinha visto o anúncio no jornal, e que seria ótimo. Ainda me deu poder de escolha: Dachshund ou Terrier Brasileiro (até então conhecido oficialmente como Fox Paulistinha, mas que todos chamam até hoje). Usei toda a minha sabedoria de cinco anos para dizer "salsichinha não, prefiro o outro", que eu sequer conhecia. Coisa de criança mesmo.

Minha mãe foi terminantemente contra, desde o principio. A Duna, que era uma vira-lata preta e de pelo assanhado que ela havia criado junto com o meu pai, havia morrido há algum tempo, mas o sofrimento do fim ainda permanecera. Não tiro a razão dela, mas meu pai simplesmente não se importou, e quis fazer do jeito dele. Meu pai geralmente é assim, de qualquer forma.

O dia de pegá-lo se aproximava, e lembro de ter desenhado um cartão de boas vindas. Era algo simples, desenhado de canetinha, com um enfeite de patinha que demorei pra fazer igual. E o melhor, tudo já tinha sido decidido. Não lembro exatamente de quem foi a ideia, se meu pai propôs e eu aceitei, ou se partiu de mim. Vai se chamar Tatau. Quando eu era bebê e estava aprendendo a falar, todos os meus brinquedos se chamavam Tatau, até que eu fui crescendo e escolhi apenas um para ser o portador desse nome. Tatau. O Tatau original era um tigre, e ele ainda está no alto da minha estante.

Fomos no Jeep azul do papai, com jornal forrado debaixo dos meus pés, eu carregando a coleira dele, que era apenas cordão preto com uma argola para ajustar. Não era preciso muito. Fui ansiosa, claro, mas não lembro se fui tagarelando até o local (que parecia longe, muito longe, fora da cidade, mas que poderia ter sido num bairro vizinho), ou se fiquei muda na expectativa. Não lembro do homem que criava, e as minhas lembranças desse dia acabam se confundindo. Lembro de entrar com o papai num quintal e lá ter a mãe do Tatau, com vários filhotinhos preto e branco. Lembro que meu pai me pediu pra escolher, e não sei exatamente qual foi o critério que usei para querer o filhote que se tornaria o meu melhor amigo. Provavelmente escolhi o mais quieto, o mais afastado, mas não posso dar certeza.

Ele era miudinho, a cabeçinha preta com as bochechas e sobrancelhas marrons (os guias de cachorro chamam a cor de pimenta), e uma faixa branca que ia do focinho até a testa. Era perfeito, era o Tatau. Era o meu Tatau com sua coleirinha de cordão. Colocamos o Tatau no carro, aos meus pés, e lembro do seu calor. Ele logo fez xixi. Mal sabíamos nós o quanto ele ia aborrecer todo mundo com essa história de fazer xixi, e muito menos que ele ia parar, e menos ainda que iria se tornar dependente de mim para fazê-lo. Naquela época, era o Tatauzinho, meu filhote.

Ele ficou na varanda do nosso apartamento, e chorou um pouquinho nos primeiros dias. Ficava constantemente do lado dele, super curiosa com aquela novidade, e ele super curioso comigo também. Desde o comecinho que o Tatau me marcou como igual, não como sua dona, não como sua lider, mas sua igual. Eu era sua irmã na matilha que era a minha família.

Nos primeiros dias, ele foi correr pra varanda e se bateu no vidro fechado. Eu tinha vontade de ficar com ele o tempo todo, e dar carinho até minha mão fazer uma cãibra, mas meu irmão me disse para me afastar e não deixar o cachorro "mufino". Devo ter me afastado, ou então era só conversa dele, porque ele nunca foi "mufino". Era só o cachorro mais legal do mundo e pronto. E com certeza ele não me achava a pessoa mais legal do mundo, mas eu estava ali, uma cachorra meio diferente, que ele gostava de brincar de vez em quando. Tatau era muito independente, e acabou se tornando absolutamente dependente nos últimos meses. Ele não gostava de muito carinho, cinco minutinhos estava bom, me solta, que saco, deixa eu ir passear. Era muito esperto. Passava o dia dentro de casa fazendo as coisas dele - o quê exatamente não posso nem imaginar -, e quando eu chegava no colégio vinha correndo me receber, e nós brincávamos. Lembro que no período de férias a gente brincava todo dia, eu conversava horrores com ele. Mas aí chegava um dia em que eu aparecia de tênis e farda, pronta para ir pra aula, e ele olhava para aquilo e entendia tudo. E se afastava, meio chateado, tentando entender o que era que a irmã dele fazia o dia inteiro longe. Até os últimos momentos em que eu estive de férias, e depois tive que retornar (ao colégio, à faculdade, às viagens que acabei fazendo, e depois ao trabalho), ele ficava triste. Se estava em casa, passava o dia ao lado dele, fosse eu sentada no chão com ele próximo, fazendo carinho em seu pêlo curto e macio e lendo um livro ou vendo tv, ou ele deitadinho aos meus pés enquanto estava no computador.

A notícia que recebi ontem ainda me parece irreal. Não consigo acreditar que você, que já passou por tanta coisa, possa não estar mais do meu lado. Fui dormir ontem tranquila em saber que você estava bem, mas esperando ouvir o "tic tic tic tic tic" das suas patinhas andando pela sala. No inicio, andando rápido e energético, cheio de curiosidade com algum objeto novo ou algum cheiro. E no fim, bem devagarzinho, mancando, feliz por ainda estar em pé. Boa noite, Tatau.

25 anos. Mora no Rio de Janeiro, é carioca de alma, mas cearense de coração. É designer e está tentando se encontrar nesse mundo. Sou casada com meu melhor amigo, o Marcelo Bernardo, e mãe da Dindi the Boston.

Gosto de ler, de dormir de rede, de inspirações repentinas e de petit gateau. Mas o mundo seria muito melhor sem aliche gente que fura fila. Ah, e de vez em quando eu desenho.

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